Felipe de Stefano Balster Martins

Nascido em 7 de setembro de 1978
Falecido em 27 de novembro de 2012
Quando me foi pedido para escrever esta biografia, me faltou coragem.
Já escrevi sobre a morte, sobre a minha perda e mudança no papel de mãe de um filho morto, da dor de amar um filho que se foi para sua jornada estelar. Escrever o histórico da vida do Felipe não é tarefa tranquila nem feliz. Chorarei o tempo todo, pelas saudades que estas revelações me trazem.
Posso ser tendenciosa, poderei ser medrosa ou fazê-lo parecer um anjo, pois "a distância é a mãe da excelência". Também posso ser verídica demais e desapontar alguns. Como achar o equilíbrio sem omissões ou elogios? Este tema, a biografia, está na pauta da mídia, com autores brigando com seus biografados e vice e versa. Já sei que ocorrem falhas e vou ser mesmo ilegítima, então me perdoem os leitores, mas mãe só tem uma.
Nasceu dia sete de setembro e com o apelido de "Sr. Independêncio", por desde muito cedo mostrar sua individualidade e liberdade de escolhas e decisões. Desde o início da vida mostrou sua precocidade, ao adiantar as fases esperadas para um tempo comum. Aprendeu a falar com precisão e pouco teve de tatibatati.
Adorava desmontar brinquedos para ver como funcionavam e os montava para outra versão. Carrinhos viraram ventilador e por aí descobria o porquê e como das coisas, hábito que se tornou vício para sempre. A fase do "porque?" foi cansativa e respostas do "porque sim" e "porque não" o decepcionava. Ia procurar nos livros e depois na internet as explicações e daí tornou-se autodidata. Nossa casa sempre teve muito incentivo às leituras, não faltando histórias em quadrinhos, coleções de histórias infantis e depois vídeos, CD's e DVD’s. Começou a ir à escola aos 4 anos e desta época temos uma pedra, pintada por ele.
Gostava de desenhar e aprendeu a ler com facilidade e praticamente sozinho. Não precisou de ajuda nos deveres escolares e pouco pedia ajuda nas dificuldades. Adorava desafios e enigmas. Mais tarde aprendeu a se exercitar lendo livros de Matemática e adorava números primos, aos quais dedicava horas de cálculos. Assim também se apaixonou por ações e sabia administrar sua carteira com lucros significativos.
Concluiu somente o ciclo básico; graduou-se pelo Colégio Técnico em Informática aos trancos e muita insistência materna, pois a escola, qualquer uma, era um incômodo. Autodidata, aprendia sozinho muito mais rápido que os colegas e às vezes já sabia a matéria antes mesmo de ser dada, o que o aborrecia pela lerdeza e dificuldades dos colegas.
Isso quando, não raro, corrigia os professores, sabendo com antecedência as matérias de praxe: português, matemática, geografia, história e por aí ia. Aprendeu sozinho como usar o computador e a internet, o que facilitou sua autonomia literária e aprendeu inglês por acessar sites e ver filmes em inglês colocando um papel sobre a legenda e vendo o filme várias vezes até entender a conversação.
Aos 16 anos foi pra Inglaterra trazendo um livro em papel bíblia de Shakespeare com toda sua obra. Este livro desapareceu. Adorou a experiência e chegou a pensar em mudar-se para lá um dia.
Aos 18 anos começou com aulas de arte com a artista plástica e professora de Artes na rede pública Fernanda Traldi, por uma década sua grande amiga e conselheira. Ela tinha recém chegado da Itália e trazia na bagagem, já excelente, abordagens artísticas diferentes. Creio que o conquistou pelas novidades e desafios pictóricos.
O Felipe desenvolveu uma cultura imensa por sua curiosidade e facilidade em estudar, mais que só ler e distrair-se; o que se propunha a entender, para saber profundamente os assuntos que o interessavam, inclusive o mundo das artes. Foi comprador/vendedor compulsivo de livros sobre Artes e usava a internet para isso, sendo assíduo frequentador virtual de sebos. A sua coleção de livros estão na Biblioteca Municipal, que na opinião dele deveria chamar-se Décio Pignatari, poeta nascido em Jundiaí e "que não tem qualquer referência a ele na cidade".
Um pouco antes, em 1996 mais ou menos, desmontou a guarda da cama de mogno, para entalhar a madeira com lamina de barbear e um canivete. Fez alguns totens, que tenho guardados. Assim, decidi por captar a criatividade dele e do irmão com aulas de entalhe em madeira com Edson Lufac, na época conhecido pelas magníficas portas entalhadas; era chamado por Pimpolho; Felipe e Plínio passaram a fazer entalhes e temos as peças feitas por eles.
O Felipe queria mais e passou a pintar e a tentar esculpir; na época morávamos num apartamento, então alugou em 1998 um porão perto de casa e passou a ficar lá durante o dia para fazer arte. Depois teve o ateliê em uma pequena casa em frente à Astra. Arcava sozinho com suas despesas e desta época em diante começou a mexer com o mercado de ações. Sempre foi ótimo em administrar dinheiro.
Mudamos em 2000 para uma casa no mesmo bairro, na Rua Nicolau Carderelli, com uma garagem espaçosa e começaram as restaurações e peças de marchetaria. Comprou algumas ferramentas mais elaboradas e desenvolveu clientela da elite pelo trabalho esmerado nas restaurações executadas. Aprendeu sozinho a empalhar assentos de cadeiras, não admitindo comprar prontas telas ou usar palhinha de plástico. Fazia questão de ir para Campinas comprar rolos de palhinha italiana, pois queria "assentos que não iriam acabar tão cedo". Chegou a ter um utilitário e a placa era 6666. Conseguiu um ajudante por alguns tempos. O irmão ajudava às vezes, mas brigavam muito, pois era exigente e implicante com qualquer má vontade.
Por essa época teve um pneumotórax espontâneo, pelo esforço de carregar peças pesadas. Ficou com dores para se mexer e respirar por alguns meses. Logo em seguida, foi roubado na oficina e, apesar, do boletim de ocorrência e das peças terem sido achadas pela polícia, elas sumiram da delegacia. Este fato o deixou arrasado, decepcionado e frustrado a ponto de desistir de continuar com estas atividades. Vendeu o que tinha por qualquer preço e desmanchou a oficina de marcenaria que tinha montado.
Creio que esta ocorrência iniciou o processo depressivo, pois dali em diante ele foi ficando cada vez mais cético cínico e antissocial. Passou a morar sozinho e continuou a pintar, sendo desta fase os "quadros azuis com muro inca", em que procurava evidenciar o relevo, com profundidades e relevâncias, parecidos com pinturas de Amilcar de Castro, por quem tenha grande apreciação.
Começou a estudar para fazer algum concurso público, sem grandes perspectivas de voltar a estudar formalmente e por não querer trabalhar com informática, sua formação no secundário. Prestou vestibular para a FAAP e entrou, mas desistiu, segundo ele, "ia ficar caro e tradicional demais. E longe".
Também entrou na Faculdade de Línguas no noturno, em Jundiaí, pois queria estudar inglês, mas desistiu quando ficou sabendo que as aulas de literatura inglesa, no segundo ano, não iriam ser dadas em inglês. Não havia na classe quem soubesse a língua o suficiente para acompanhar as aulas. Continuou estudando por conta própria, via internet.
Fez concurso para a Prefeitura e para a Câmara Municipal de Jundiaí e passou nos dois. Algum tempo depois foi chamado para a Prefeitura, sendo admitido na Secretaria de Obras. Nunca foi admitido na Câmara porque o concurso caducou e era lá que ele queria ter trabalhado. Trabalhava para se sustentar e não gostava do que fazia, apesar de no início divertir-se bastante com os colegas.
Morou durante três anos próximo do Bar do Zé, na Vila Municipal. Ali tinha amigos de bar. Passou a se queixar de insônia persistente. Algumas vezes precisava ir ao pronto socorro pelas crises terríveis de enxaqueca. Após ser medicado com drogas injetáveis, dormia por horas e no dia seguinte me pedia atestado por não ter conseguido ir trabalhar. Pouco soubemos de amigas e/ou namoradas. Nada falava sobre esse assunto e hostilizava francamente qualquer comentário familiar. Aos 20 anos já dizia que jamais se casaria ou teria filhos; na ocasião chegou a pedir indicação de urologista para fazer vasectomia. Fui contra, alegando que isso só poderia ocorrer aos 30 anos.
Tinha uma gata, salva num bueiro perto da Prefeitura, "A Gata" (Gatucha para alguns) que ele adorava e era sua companheira mais evidente. Era sua brincadeira favorita e cuidava bem da bichana.
Implicava muitos com os pelos pela casa e fui com ele comprar um aspirador. Nunca quis ter empregada ou faxineira, "seria mais um gasto", já que ele fazia todo serviço e cozinhava para si mesmo, com requintes. Nunca fomos convidados a entrar com boa vontade ou alegria, esperava que nos retirássemos o mais rápido possível. Detestava qualquer palpite ou opinião sobre sua vida ou decisões.
Continuou pintando e seus quadros foram ficando sombrios e chocantes. A série de autorretratos, e quadros de temas mitológicos são sempre trágicos e herméticos. Daí em diante e por cerca de quatro ou cinco anos começou a beber etílicos diariamente, de forma abusiva e intensa, até sua morte, sonegando esta informação de nós. Mas, no último ano, eram visíveis os sinais da devastação alcoólica: tremor nas mãos, comentários extremamente depressivos e vagos, descontrole emocional, hálito alcoólico constante, matinal e a perda de peso. Negava de forma veemente estar precisando de ajuda e mesmo depois de ir a três médicos, continuou negando estar doente. Não quis fazer os tratamentos propostos, não aceitou minha ajuda. A meta já era o suicídio, o último dos sintomas da depressão.
Continuava pintando, mas deixou de mostrar os quadros. Só fomos achá-los depois de sua morte, em novembro de 2012 quando tivemos que buscar seus documentos no apartamento. Uns estavam enrolados debaixo da cama, dentro de armários e embaixo do colchão. Alguns com molduras e outros telas deixadas pelos cantos. Pinturas em pranchas de MDF. Os quadros são aterradores, pois é óbvia a presença de alucinações, com monstrinhos apavorantes, cenas de violência e o tema do suicídio presente, dissimulado ou não. A leitura do diário complementará esta fase sombria que culmina com a morte por enforcamento aos 34 anos de idade.